Like a falling rain

The stars above guide me and moonlight is free

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Do Alto dos Montes

Ó meio-dia! Tempo festivo!
Ó jardim do verão!
Inquieta ventura em se deter, atentar e esperar: -
Pelos amigos aguardo, dia e noite disposto:
Onde estão, amigos? Venham! É tempo! É tempo!

Não foi para vocês que o cinza da geleira
Se enfeitou hoje de rosas?
É a vocês que o riacho procura, e ansiosamente afluem
E se batem ventos e nuvens, mais alto no azul,
Para observá-los a distância, como pássaros na espreita.

A grande altura lhes preparei minha mesa: -
Quem habita tão próximo
Às estrelas, e às escuras distâncias do abismo?
Meu reino - que reino se estendeu mais longe?
E o meu mel - quem o terá provado?

- Aí estão vocês, amigos! Como, não é a mim
Que estão a buscar?
Vocês exitam, surpresos - oh, melhor se tivesse rancor!
Eu - não sou mais eu? Mudaram a mão, o rosto, o passo?
E o que sou, amigos - não sou para vocês?

Terei me tornado outro? A mim mesmo estranho?
De mim mesmo evadido?
Um lutador que a si mesmo subjugou demasiadas vezes?
Que demasiadas vezes se opôs à própria força?
Ferido e detido pela própria vitória?

Procurei onde o vento sopra mais cortante?
Aprendi a viver
Onde ninguém vive, em ermas zonas de ursos brancos,
Desaprendi Deus e Homem, oração e maldição?
Tornei-me um espectro que caminha nas geleiras?

- Velhos amigos! Vejam! Agora parecem pálidos,
Cheios de amor e de horror!
Não, partam! Não se aborreçam! Aqui - não poderiam habitar:
Aqui, neste longínquo reino de pedras e gelo -
Aqui é preciso ser como caçador e igual à cabra montesa.

Um mau caçador me tornei! - Vejam como
Está tenso o meu arco!
O mais forte é aquele que logrou dessa tensão - -:
Mas agora, cuidado! Perigosa é a seta,
Como nenhuma outra, - fora daqui! Para o bem de vocês!...

Já se vão? - Ó coração, suportaste bastante,
Forte permaneceu tua esperança:
Mantém abertas para novos amigos as tuas portas!
Deixa os velhos! Deixa a recordação!
Se outrora foste jovem, agora - és ainda mais jovem!

O que uma vez nos ligou, o laço da mesma esperança, -
Quem lê ainda os sinais,
Empalidecidos, que há tempos o amor ali inscreveu?
Eu o comparo a um pergaminho que a mão
hesita em segurar, - como ele engrecido e consumido.

Já não são amigos, são - como chamá-los? -
Somente fantasmas de amigos!
Eles ainda batem, à noite, em meu coração e minha janela,
Olham para mim e dizem: "mas éramos amigos!"
- Ó palavras murchas, que um dia cheiraram a rosas!

Ó anelo da juventude, que não se compreendia!
Aqueles por quem eu ansiava,
Que julgava como eu transformados, comigo aparentados,
O fato de envelhecerem os afastou de mim:
Somente quem muda pertence ao meu mundo.

Ó meio-dia da vida! Segunda juventude!
Ó jardim do verão!
Inquieta ventura em se deter, atentar e esperar!
Pelos amigos aguardo, dia e noite disposto,
Pelos novos amigos! Venham! É tempo! É tempo!

Esta canção acabou, - o grito doce da saudade
Morreu na boca:
Um mago foi seu autor, o amigo da hora certa,
O amigo do meio-dia - não! não perguntem quem é ele -
Aconteceu no meio-dia, quando Um se tornou Dois...

Agora celebramos, seguros da vitória comum,
A festa das festas:
O amigo Zaratustra chegou, o hóspede dos hóspedes!
Agora o mundo ri, rasgou-se a horrível cortina,
É hora do casamento entre Luz e as Trevas...


Nietzche, Friedrich - Além do bem e do mal.